Projeto de lei que tramita no senado pode colocar um ponto final em um controvérsia que se arrasta há décadas: o tamanho das áreas de preservação permanente (APPs) urbanas. O PLS 368/2012 propõe que a largura dessas faixas não edificáveis ao longo de cursos d’água naturais seja estabelecida pelos municípios em seus planos diretores e nas leis de zoneamento.
À primeira vista, pode parecer uma mudança simples. Mas trata-se de um debate histórico com desdobramentos que levaram o Superior Tribunal de Justiça (STJ) a suspender todos os processos relacionados ao tema em busca de uma pacificação. No centro da discussão estão duas leis federais. A primeira, de 1979 (Lei 6766), determina o parcelamento do solo urbano; a segunda, de 2012 (Lei 12.651), popularmente chamada de novo Código Florestal, dispõe sobre a proteção da vegetação nativa.
Ambas, contêm artigos que especificam a largura das faixas não edificáveis ao longo das margens de curso d’água em áreas urbanas – as famosas APP’s urbanas. Enquanto a Lei 12.651/2012 determina que essa largura mínima varie entre 30 e 500 metros (a depender da dimensão do curso d’água), a Lei 6.766/79 entende que o recuo deve ser de, no mínimo 15 metros. E é aí que começa o imbróglio.
Loteamentos, edificações e obras de desenvolvimento urbano próximos a rios não raro se veem tutelados ora por uma legislação, ora por outra, conforme a interpretação de cada tribunal . “O Código Florestal cometeu um erro grande ao não distinguir áreas urbanas e rurais, que obviamente devem ter tratamentos diferenciados”, afirma Marcos Saes, advogado e presidente da Comissão de Direito Ambiental do IBRADIM.
Segundo ele, até 2003, parte tanto da doutrina quanto da jurisprudência aceitava que a Lei de Parcelamento do solo deveria ser aplicada às áreas urbanas; já o Código Florestal vigente até então (Lei 4.771/1965) considerava a aplicação da lei às áreas rurais. Esse entendimento majoritário durou até 2012, quando o novo Código entrou em vigor. “O problema é que no artigo 4º da Lei 12.651/2012 vetou-se um parágrafo – com base no princípio da proibição do retrocesso – que estipulava que APPs urbanas teriam suas larguras mínimas determinadas por planos diretores e leis de uso e ocupação do solo, que aí sim levariam em conta os 15 metros previsto na Lei de Parcelamento do Solo”, explica Saes. “Com esse veto, criou-se uma celeuma que perdura até hoje”, acrescenta.
Outras alterações na Lei de Parcelamento do Solo e no Código Florestal ajudaram a aprofundar a polêmica. A principal delas veio no ano passado. A Lei 13.913/2019 alterou um artigo da Lei de Parcelamento do Solo que dizia que a faixa não edificável ao longo dos cursos d’água deveria ser de 15 metros, “salvo maiores exigências da legislação específica”, suprimindo este último trecho.
Por “legislação específica”, muitos tribunais interpretavam tratar-se do Código Florestal. Afinal, como o assunto em pauta é preservar a vegetação, a lei ambiental seria a específica, e a lei urbanística, a genérica. A exclusão desse trecho da nova lei, portanto, acabaria com a brecha para que o Código Florestal prevalecesse na questão.
Mas não é o que entende o Ministério Público. Para a promotora de justiça e assessora da Coordenadoria de Recursos Cíveis do Ministério Público de Santa Catarina, Claudine Vidal de Negreiros, não deve haver diferenciação entre APPs rurais e urbanas, uma vez que o que interessa é a preservação dos cursos d’água e seus entornos, independentemente do local em que se encontram.
“O fato de a Lei 6.766 ter fixado 15 metros a faixa não edificável ao longo dos cursos d’água não prejudica a proteção estabelecida pelo Código Florestal, até porque a Lei de Parcelamento do Solo destina-se à regulação do parcelamento do solo urbano por meio de loteamento ou desmembramento”, esclarece Claudine. Além disso, o princípio da proibição de insuficiência de proteção ou de proteção deficiente garantiria que os “os comandos gerais do Código Florestal não podem ser contrariado, sob pena de se mitigar a proteção ao meio ambiente”, alerta a promotora.
Para quem atua do outro lado do balcão, a expectativa é que o PLS 368 e o julgamento do tema 1010 apaziguem a questão e reduzam o número de empreendimentos afetados pela confusão jurídica. É o que espera Caio Portugal, presidente da Associação das Empresas de Loteamento e Desenvolvimento Urbano (Aelo). “Estamos diante de um problema gigantesco para o desenvolvimento das cidades, já que muitas foram construídas ao longo de rios”, ressalta.
Portugal salienta que o impacto se nota especialmente em empreendimentos licenciados antes do Código Florestal de 2012 – e que, portanto, deveriam ter o uso e ocupação garantidos. “A majoração das faixas de proteção de forma retroativa somente provoca insegurança jurídica”, constata. Para ele, a esperança é que o tema 1010 promova o entendimento da aplicação dos institutos garantidores do direito adquirido. “A execução do direito ambiental deve ser objetiva e segura para todos”, resume.
Fonte: Revista Debate Imobiliário – IBRADIM – Instituto Brasileiro do Direito Imobiliário – edição nº6 – agosto de 2020.